Uma das soluções urbanas mais comentadas do último ano, as superquadras de Barcelona, na Espanha, não são unanimidade. Uma pesquisa feita informalmente por um grupo de moradores do bairro Poblenou, onde foi implantado um projeto piloto, resultou em 87% de desaprovação, contra 13% de satisfeitos. O grupo, declaradamente contrário à intervenção, luta para que a prefeitura estabeleça uma consulta formal. Mas o que haveria de errado com as superquadras?
Para um viajante brasileiro, como eu, a diferença de realidade é tão grande que tudo parece um grande cenário, um pedacinho da vida urbana em que as pessoas, de fato, têm prioridade. Ver uma menina estudar sentada em uma mesa no meio do asfalto onde antes provavelmente passavam alguns carros foi inspirador.
Os bancos, cadeiras e outros espaços de convívio pareciam bem utilizados pelos funcionários das empresas próximas durante a tradicional siesta, e foi renovador ver crianças pedalando sozinhas e sem correr grandes riscos. Os carros não estão totalmente proibidos de entrar naquela zona, mas circulam em velocidades baixíssimas, com limite de 10 km/h – em determinado momento, vi inclusive caminhões trafegando por ali, provavelmente para entregas.
Por outro lado, a maioria das “atrações” da superquadra são jogos pintados no chão; e ninguém vai pular amarelinha no caminho ao trabalho só por ter deixado o carro em casa. Dá para entender a frustração de parte dos moradores que antes tinham duas ou três faixas dedicadas à mobilidade e que agora tem uma raia de corrida para brincar (foto abaixo).
Quem defende o fim do projeto piloto afirma que o comércio do bairro está sofrendo pela perda das 50 vagas de estacionamento, que as pessoas precisam caminhar para fora da superquadra para pegar um ônibus – transtorno para idosos e pessoas com problemas de locomoção –, e questiona até a acessibilidade de veículos de emergência naquela área de 400 x 400 metros. Seria esse mais um caso de medo da mudança? Alguns catalães com quem conversei garantem que isso acontece com qualquer novidade na cidade, é quase cultural, lembraram que muitas vezes os insatisfeitos ganham protagonismo enquanto muitos apenas seguem a vida sem participar dos debates. As pessoas do bairro ainda não encontraram atividades comunitárias para justificar tantos espaços novos, mas isso naturalmente deve ocorrer.
O fato é que Barcelona tem um objetivo claro e está perseguindo-o. O novo plano de mobilidade quer reduzir o tráfego de carros em 21% com um tempero extra: transformar 60% dos espaços das ruas atualmente usados pelos veículos em espaços para pessoas. Atualmente, a cidade tem 3,5 mil mortes anuais causadas apenas pela poluição do ar e 61% da população está exposta a níveis de ruído acima do permitido pela legislação. Outra promessa do plano e da implantação das superquadras é que qualquer cidadão tenha uma estação de transporte a no máximo 300 metros de distância, que o tempo médio de espera seja de até cinco minutos (hoje é de 14 minutos) e que se possa ir de um ponto a outro na cidade com apenas uma baldeação em 95% dos casos.
Mercedes Vidal Lago, conselheira de mobilidade da cidade de Barcelona, afirmou, em entrevista ao Cities Today, que a cidade seguirá firme na transformação de espaços urbanos antes ocupados pelo trânsito de veículos e por vagas de estacionamento em lugares para atividades sociais como descanso, entretenimento, interação, mercados e feiras de rua. Sobre a superquadra do Poblenou, ela afirmou: “Nós aprendemos muito com a experiência, o que nos permitiu continuar com a implementação do programa neste ano. Em 2017, pretendemos começar cinco novas superquadras: Sant Antoni, Horta, Eixample, les Corts e Gracia”.
A superquadra é uma rua completa?
Não há como não relacionar a superquadra do Poblenou à Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono, criada pelo WRI Brasil em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e o Instituto Clima e Sociedade (ICS), que tem a proposta de disseminar o conceito de ruas completas pelo Brasil. São iniciativas com um objetivo em comum – priorizar as pessoas e a sua segurança no espaço urbano –, mas com abordagens diferentes.
Enquanto Barcelona já é um exemplo de cidade compacta e quer fazer as pessoas abandonarem de vez o transporte motorizado individual utilizando-se da pedestrianização das ruas, o conceito de ruas completas proposto pelo WRI Brasil é de integração modal e acessibilidade total. Importa mais a convivência segura do que a simples devolução do espaço urbano aos pedestres. Não significa retirar os carros, mas fazer com que a legislação, que garante o mesmo direito de uso do espaço a todos os usuários, seja de fato cumprida. É o desenho urbano usado a favor da segurança e da boa convivência.
Em ambos os casos, trata-se de estabelecer uma visão de cidade para o futuro e projetar medidas de desenho urbano com objetivos bem definidos. Para trabalhar com as dez cidades do projeto, o WRI Brasil dá suporte às equipes técnicas de cada uma delas no diagnóstico. As ruas escolhidas têm características que precisam ser avaliadas caso a caso. Mudam os usos, o comportamento das pessoas, a vocação de cada região e o planejamento do município precisa ser levado em consideração. Pode ser que a rua completa de Recife visualmente não se pareça em nada com a de Campinas. Ou que a de Niterói tenha ciclovia, enquanto a de João Pessoa invista na priorização do transporte coletivo. As ruas completas, por fim, são projetadas para dar segurança e conforto a todos os cidadãos.
A experiência de Barcelona tem muito a ensinar para o mundo. Mostra a convicção no planejamento urbano como ferramenta de desenvolvimento social, no caso específico utilizado para beneficiar a saúde da população por meio da melhoria da qualidade do ar e da poluição sonora. As ruas completas, ao passo que forem se tornando realidade no Brasil, serão uma semente plantada rumo a um futuro de maior equidade nos espaços urbanos. Já dedicamos décadas de planejamento voltado ao transporte motorizado individual, está na hora de buscar um reequilíbrio, sem que isso signifique necessariamente ser contra os carros.
Via TheCityFix Brasil.